quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Canção...


Não sou a das águas vista
nem a dos homens amada;
nem a que sonhava o artista
em cujas mãos fui formada.
Talvez em pensar que existia
vá sendo eu mesmo enganada


Quando o tempo em seu abraço
quebra meu corpo, e tem pena,
quanto mais me despedaço
mais fico inteira e serena.
Por meu dom divino faço
tudo a que Deus me condena.


Da virtude de estar quieta
componho meu movimento.
Por indireta e direta,
perturbo estrelas e vento.
Sou a passagem da seta
e a seta, - em cada momento.


Não digas aos que encontrares
que fui conhecida tua.
Quando houve nos largos mares
desenho certo de rua?
E de teres visto luares,
que ousarás contar da lua?

(Cecília Meireles)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sensualidade,



É no gesto trivial
naquele mais banalizado
no cotidiano expresso no hábito
que a sensualidade se evidencia...

Um olhar ao despertar
o cabelo ao se pentear
as mãos ao se tocar
até um cigarro meio abandonado entre os lábios...

Aquela marca de um acidente na infância
que conta tantas histórias
que diz tanto sobre o ser admirado
o ser descontraído...

Pra ser bem sincera,
a sensualidade para os meus olhos
está no simples e habita justamente
na intimidade entre aquele onde olhos repousam e aquele que mira...

São Paulo/SP, 9 de dezembro de 2009.


(Inspirada na foto da Simone de Beauvoir e na troca de impressões com Giane e Marina na noite passada)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Adeus



(Eugénio de Andrade)


"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus."

(foi mantida a grafia original)

Para acompanhar essa poesia indico a música do Paulinho da Viola "Ainda Mais" (http://www.youtube.com/watch?v=G9rxxRoTZ7A)


Ainda mais
Paulinho da Viola
Composição: Eduardo Gudin e Paulinho da Viola

Foi como tudo na vida que o tempo desfaz
Quando menos se quer
Uma desilusão assim
Faz a gente perder a fé
E ninguém é feliz, viu
Se o amor não lhe quer
Mas enfim, como posso fingir
E pensar em você como um caso qualquer
Se entre nós tudo terminou
Eu ainda não sei mulher
E por mim não irei renunciar
Antes de ver o que eu não vi em seu olhar
Antes que a derradeira chama que ficou
Não queira mais queimar

Vai, que toda verdade de um amor
O tempo traz
Quem sabe um dia você volta para mim
E amando ainda mais